por Pedro Luso de Carvalho
PABLO NERUDA, como era conhecido Neftalí Ricardo Reyes, nasceu em
Parral, em 1904, e morreu em Santiago, Chile, em 1973. Em 1971, recebeu o
Prêmio Nobel de Literatura.
JULIO CORTÁZAR, filho de pais argentinos, nasceu em Bruxelas, em 1914;
foi educado na Argentina, onde estudou Letras e trabalhou como professor em áreas
rurais do país; era naturalizado argentino. Em 1951, mudou-se para Paris, onde
morreu no ano de 1984.
A Editora Civilização Brasileira lançou, em 2001, Obra crítica/3, de Julio Cortázar, um livro de excelente qualidade,
o que, aliás, não surpreende, já que estamos falando de um importante
romancista, contista, ensaísta e crítico. Nessa obra, em três volumes, vê-se
que quem o escreve é um escritor erudito, maduro e sensível, aí distante das
suas obras de ficção, já que se volta para ensaios, crítica, artigos e cartas.
O responsável pela organização da obra foi Saúl Sosnowski. Os tradutores foram
Paulina Wacht e Ari Roitman.
Escolhemos de Obra crítica/3,
o ensaio Neruda entre nós, escrito por Julio Cortázar, em Genebra, no ano de 1973, no
qual analisa a época em que Neruda conviveu com seus amigos, na Ilha Negra e
fora dela; em que fala de sua poesia, de sua luta política - sempre sonhando
com a igualdade social, não apenas no Chile, seu país, ou na América do Sul,
mas em todo o mundo, sem quaisquer fronteiras, nesse sentido. Vejamos, pois, o
que Cortázar fala sobre Neruda, nos trechos que seguem:
[ESPAÇO DA CRÍTICA]
SOBRE PABLO NERUDA
(Julio Cortázar)
Tão próximo como está na vida e na morte, toda tentativa de ‘fixá-lo’ a
partir da escrita corre o risco de qualquer fotografia, de qualquer testemunho
unilateral: Neruda de perfil, Neruda poeta social, as abordagens usuais e quase
sempre falíveis. A história, a arqueologia, a biografia, coincidem na mesma
tarefa terrível: espetar a borboleta no cartão. E o único resgate que as
justifica vem da região imaginária da inteligência, de sua capacidade para ver
em pleno voo aquelas asas que já não são cinza em cada pequeno ataúde de museu.
Quando entrei pela última vez em seu quarto na Ilha Negra, em fevereiro
deste ano, Pablo Neruda estava na cama, talvez já definitivamente imobilizado,
e, no entanto, sei que naquela noite andamos juntos, por praias e sendas, que
chegamos ainda mais longe do que dois anos antes, quando ele veio me receber na
entrada da casa e quis me mostrar as terras que pensava doar para que depois de
sua morte erguessem ali uma residência para escritores jovens.
Assim, como se estivesse passeando ao seu lado e ouvindo as suas
palavras, gostaria de dizer aqui a minha palavra de latino-americano já velho,
porque muitas vezes no turbilhão da quase impensável aceleração histórica do
século senti dolorosamente que para muitos a imagem universal de Pablo Neruda
era uma imagem maniqueísta, uma estátua já erigida que os olhos das novas
gerações olhavam com o respeito entre mesclado de indiferença que parece ser o
destino de todo bronze em toda praça.
Gostaria de poder contar a estes jovens de qualquer país do mundo, com a
simplicidade de quem encontra os amigos num bar, as razões de um amor que
transcende a poesia por si mesma, um amor que tem outro sentido, diferente do
meu amor pela poesia de John Keats ou de César Vallejo ou de Paul Eluard; falar
do que ocorreu nas minhas terras latino-americanas nesta primeira metade de um
século que já se confunde para eles na continuidade de um passado que tudo devora
e confunde.
Conheci muito pouco o homem Pablo Neruda, porque entre os meus defeitos
está o de não me aproximar dos escritores, preferir egoisticamente a obra à
pessoa. Tive dois testemunhos do seu afeto por mim: um par de livros com
dedicatória que me remeteu a Paris, sem jamais ter recebido nada meu, e uma
página que enviou para a revista cujo nome não me lembro, na qual generosamente
tentava aplacar uma falsa, absurda polêmica entre José Maria Argüedas e mim a
propósito de escritores residentes e escritores exilados.
Na minha primeira visita, dois anos antes, tinha me abraçado dizendo um ‘até
logo’ que se cumpriria na França; dessa vez nos fitou por um instante, suas
mãos nas nossas, e disse: Melhor a gente
não se despedir, não é mesmo?, os fatigados olhos já distantes.
Era assim mesmo, não tínhamos que nos despedir; isto que escrevi é a
minha presença junto a ele e junto ao Chile. Sei que um dia voltaremos à Ilha
Negra, que o seu povo entrará por aquela porta e encontrará em cada pedra, em
cada folha de árvore, em cada grito de pássaro marinho, a poesia sempre viva
deste homem que tanto o amou.
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