[ESPAÇO DO ENSAIO]
OS NOSSOS AMIGOS
- PEDRO LUSO DE CARVALHO
Desde minha infância ouço
pessoas dizerem que mais vale um amigo que mil parentes. Por outro lado, de uma
ou de outra pessoa, tenho ouvido a afirmação da existência de amizade entre
pais e filhos; pouco ouvi, no entanto, a afirmação de irmãos dizendo-se amigos.
Por esse enunciado, fica claro que o tema será tratado sob três ângulos, quais
sejam, amizade entre: a) pessoas sem
vínculo de parentesco; b) pais e
filhos; c) irmãos.
Os nossos primeiros
amigos (item a) são formados na infância, e, de muitos deles, só nos separamos
com a distância ou com a morte. Nessa fase da vida formamos amigos para com
eles compartilharmos as brincadeiras próprias da idade, as disputas saudáveis
nos esportes etc. Também na adolescência sentimos a necessidade de amigos para
contarmos nossas aventuras amorosas, para termos dos amigos a confirmação ou
não de estarmos agindo da maneira certa, como, por exemplo, nas tentativas de
aproximação de quem pretendemos namorar, ou apenas ‘ficar’, como se diz
modernamente. Também o adolescente, homem ou mulher, necessita de amigos para
falar de suas aspirações e projetos; de seus amores e de suas decepções
amorosas. E, daí por diante. Passadas essas duas fases, agora pessoas adultas,
com família constituída ou não, com profissão para dedicar-se, sobrecarregada
de compromissos, os amigos parecem ser ainda imprescindíveis, tanto que ali
estão eles, os amigos formados na idade adulta, ou aqueles vindos da infância
ou da adolescência.
O escritor Carlos Fuentes
diz em seu livro Este é meu credo, no
ensaio que faz sobre amizade: “Aquilo que não temos, encontramos no amigo.
Acredito nesse benefício e o cultivo desde a infância. Nisso, não sou diferente
da maioria dos seres humanos. A amizade é o grande elo inicial entre o lar e o
mundo. O lar feliz ou infeliz é a aula de nossa sabedoria original, mas a
amizade é a sua prova. O que recebemos da família, confirmamos na amizade. As
variações, discrepâncias ou semelhanças entre a família e os amigos determinam
as rotas contraditórias de nossa vida. Embora amemos nosso lar, todos passamos
pelo momento inquieto ou instável do abandono (embora o amemos, embora nele
permaneçamos). O abandono do lar só tem a recompensa da amizade. Mais ainda:
sem a amizade externa, a morada interna desmoronaria. A amizade não disputa com
a família os inícios da vida: ela os confirma, garante e prolonga. A amizade
abre caminho aos sentimentos que só podem crescer fora do lar. Encerrados na
casa da família, murchariam como flores sem água. Aberta as portas da casa,
descobrimos formas de amor que irmanam o lar e o mundo. Essas formas se chamam
amizades”.
Está claro que Carlos
Fuentes referiu-se à amizade entre pessoas sem vínculo de parentesco. Agora,
passemos, pois, ao item b, supra,
amizade entre pais e filhos. Entendo que o vínculo que existe em ambos não pode
ser chamado de amizade, embora haja aqueles que se vangloriam em dizer que a
relação que existe entre ele e seus filhos é uma relação de amizade. Outros
sentimentos ligam fortemente os pais a seus filhos – não o sentimento da
amizade. Mas se tratam de sentimentos fortes e importantes, embora os
sentimentos dos filhos não sejam tão fortes quanto os dos seus pais. E a
explicação está no desejo que o filho tem em criar o seu próprio mundo,
partindo do principio de que sua realização se dará fora do lar no qual sempre
viveu, como disse, com sabedoria, esse nome importante da literatura mexicana,
Carlos Fuentes, no texto supra.
A respeito do que
afirmamos acima, sobre a impossibilidade de existir amizade entre pais e
filhos, como ocorre com pessoas sem esse vínculo de sangue, trazemos os
ensinamentos de Michel de Montaigne, o filósofo da predileção de Jean-Paul
Sartre, que, num dos capítulos dos seus Ensaios, fala sobre o tema, com o
título: Da amizade. Diz, Montaigne: “Nas relações entre pais e filhos é mais o
respeito que domina. A amizade nutre-se de comunicação, a qual não pode
estabelecer-se nesse domínio em virtude da grande diferença que entre eles
existe, de todos os pontos de vista; a esse intercâmbio de ideias e emoções
poderia por vezes chocar os deveres recíprocos que a natureza lhes impôs, pois
se todos os pensamentos íntimos dos pais se comunicassem aos filhos, ocorreria
entre eles familiaridades inconvenientes. Mais ainda: não podem os filhos dar
conselhos ou formular censuras a seus pais, o que é, entretanto, uma das
primeiras obrigações da amizade”.
Resta-nos, pois, o item
c, a amizade entre irmãos. Por motivos semelhantes aos mencionados acima,
quando falamos sobre a impossibilidade de existir amizade entre pais e filhos,
dizemos agora que a situação é semelhante entre irmãos, com algumas variantes –
não pelo respeito que domina nesse caso a relação entre pai e filho, ou por
sentimentos nobres; ao contrário, sentimentos vis, muitas vezes, como é o caso
da inveja, que, sendo desmedida, logo se têm como coadjuvante o ódio e, como consequência,
a traição, com as suas formas mais sórdidas; e, como o ódio, do qual essas
pessoas ficam impregnadas, logo se vê a prática de despropósitos contra o
irmão; atos que demonstram não só a discórdia, mas também um sentimento de
destruição do outro, embora nem sempre consciente; sente-se isso quando se vê
irmãos invejosos colocarem barreiras no relacionamento entre o irmão e seus
pais, quando querem alijá-lo da família, cuja explicação seria óbvia e fácil
para a psicologia. Freud não teria dificuldades em explicar tal fenômeno.
Trazemos novamente o
ensinamento de Michel de Montaigne a respeito da relação entre irmãos: “É, em
verdade, um belo nome e digno da maior afeição o nome de irmão; e por isso La
Boétie e eu o empregamos quando nos tornamos amigos; mas na realidade, a
comunidade de interesses, a partilha de bens, a pobreza de um como consequência
da riqueza de outro, destemperam consideravelmente a união formal. Em devendo
os irmãos, para vencer neste mundo, seguir o mesmo caminho, andar com passo
igual, inevitável se torna que se choquem amiúde. Mais ainda: é a
correspondência dos gostos que engendra essas verdadeiras e perfeitas amizades
e não há razão para que ela se verifique entre pai e filho, ou entre irmãos, os
quais podem ter gostos totalmente diferentes”.
Voltemos ao tema, qual
seja, a amizade - tema que não inclui pais, filhos e tampouco irmãos - com este
trecho de Carlos Fuentes, in Este é meu
credo, como segue: “Que sempre falta descobrir mais do que já existe. Que a
amizade se colhe porque se cultiva. Que ninguém faz amigos sem fazer inimigos,
mas que inimigo algum jamais alcançará a altura de um amigo. Que a amizade é
uma forma de discrição: não admite a maledicência que maldiz àquela que a diz,
nem a fofoca que transforma tudo em lixo. Amizade é confiança. (É mais
vergonhoso desconfiar dos amigos do que enganá-los, escreveu La Rochefoucauld.)
Que a amizade, para ser próxima, mostra-nos o caminho do respeito e da
distância, embora a amizade permita amar e detestar as mesmas coisas.”
Para encerar, vejamos a
lição que Carlos Fuentes aprendeu com seu dileto amigo, um dos gênios do
cinema, Luis Buñuel: “Digo naturalidade passiva e me ocorre que, sendo o
diálogo uma das celebrações da amizade, o silêncio também pode sê-lo. E um
ensinamento de minha amizade com Luis Buñuel. A princípio, pensei que suas
lacunas durante uma conversa geralmente muito animada fossem falha minha, e uma
censura da parte dele. Aprendi que saber estar juntos sem dizer nada era uma
forma superior de amizade. Era respeito. Era reverência. Era reflexão, oposta
ao simples tagarelar. Não somos, instantaneamente, conversadores. Seremos,
instantaneamente, filósofos... Não eram estóicos Sêneca e Manolete, ambos de
Córdoba?”
REFERÊNCIAS:
FUENTES, Carlos. Este é meu credo. Trad. de Ebréia de
Castro Alves. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.
MONTAIGNE, Michel. Ensaios. Trad. de Sérgio Milliet.
Porto Alegre: Editora Globo, 1961
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