13 de nov. de 2010

SIMONE DE BEAUVOIR - Fala sobre Sartre




           por Pedro Luso de Carvalho


 
        Em Na força da idade, traduzida por Sérgio Milliet, Simone de Beauvoir, dá continuidade à narração de suas memórias como fez em Memórias de uma moça bem comportada. Dessa obra, La force de l’âge, transcrevo um interessante trecho no qual a escritora enfatiza a avidez de Sartre pelo conhecimento, avidez que também compartilhava. Aí, Beauvoir faz referência à sua conceituada obra, O Segundo Sexo, e dá ênfase à concepção das teorias de Sartre, bem como a sua relutância em aceitá-las, algumas vezes, na forma em que as transmitia a ela, não deixando de reconhecer, no entanto, que havia algo mais fecundo nos seus exageros, como diz no referido trecho:

        Menos entregue à literatura do que Sartre era, como ele, ávida de saber; mas ele punha muito mais obstinação do que eu, em correr atrás da verdade. Tentei mostrar em Le Deuxième Sexe por que a situação da mulher a impede ainda hoje de atacar o mundo pela raiz; desejava conhece-lo, exprimi-lo, mas nunca pensara em arrancar-lhe os segredos últimos pela força de meu cérebro. Demais, naquele ano eu estava demasiado absorvida pela novidade de minhas experiências para sacrificar muito à filosofia.

        Limitava-me a discutir as idéias de Sartre. Mal nos encontrávamos na estação de Tours ou de Austerlitz e já ele me agarrava: “Tenho uma nova teoria”. Escutava-o atentamente, mas não sem certa desconfiança. Pagniez pretendia que as belas construções de seu camarada assentavam amiúde em um sofisma escondido; quando uma idéia de Sartre me desagradava eu procurava “o sofisma de base”; mais de uma vez achei-o; assim foi que desmantelei certa “teoria do cômico” a que, de resto, Sartre pouco ligava. Noutros casos ele me encarniçava; a ponto de não hesitar em desprezar o bom senso quando eu o acuava.

        Ele fazia questão, já o disse, de salvar a realidade deste mundo; afirmava que ela coincide exatamente com o conhecimento que o homem tem dela; se houvesse integrado no mundo os próprios instrumentos desse conhecimento, sua posição fora mais sólida, mas ele recusava-se a acreditar na ciência, a tal ponto que de uma feita eu o impeli a sustentar que os ácaros e outros animaizinhos invisíveis a olho nu simplesmente não existiam.

        Era absurdo, ele o sabia, mas não deu o braço a torcer porque sabia também que, quando se tem nas mãos uma evidência, cumpre apegar-se a ela contra tudo e contra todos, contra a própria razão, ainda que seja incapaz de justificá-la. Compreendi mais tarde que para fazer descobertas o essencial é não perceber, aqui e acolá, luzes que os outros não suspeitam, e sim se atirar a elas não dando importância a mais coisa nenhuma; eu acusava então Sartre de leviandade, mas dava-me conta assim mesmo de que havia algo de fecundo em seus exageros do que em meus escrúpulos”.





REFERÊNCIAS:
BEAUVOIR, Simone. Na Força da Idade. Tradução de Sérgio Milliet, Difusão Européia do Livro, São Paulo , 1961, págs. 36/37.