6 de set. de 2011

[Conto] MÉRIMÉE - Mateus Falcone




                   por Pedro Luso de Carvalho


        O escritor francês Prosper Mérimée mostra a sua maestria na arte do conto, ao escrever uma das mais importantes obras de ficção nesse gênero da literatura: Mateus Falcone. A seguir procurarei fazer um resumo dessa obra clássica de Mérimée, que integra, além de Novelas Completas, uma antologia universal dos melhores contos de todos os tempos, que foi organizado pelo erudito escritor italiano Italo Galvino.

        A história de Mérimée começa a ser contada com a descrição do local onde se desenrolará o drama de Mateus Falcone, um mato bastante extenso, que se constitui na pátria dos pastores corsos e de pessoas que estão envolvidas com a justiça. Conta, que para se chegar nesse local, saindo de Porto Vecchio para o interior da ilha, rumo ao nordeste, depara-se com elevação do terreno, e que daí levará três horas de caminhada por caminhos tortuosos, obstruídos de pedras enormes ou escavados em grotões. Aí, o lavrador corso semeia a terra para aguardar uma nova colheita, ateando fogo em uma extensão da mata, que se propaga além do necessário; método que usa para livrar-se do trabalho de adubar a terra. Narra ainda, que compõem o mato árvores de diversas espécies e arbustos, misturados e confundidos ao deus-dará, e que só machado poderia abrir passagem, com matos tão espessos, que nem os carneiros selvagens conseguem penetrá-los.

        Nesse local, o mato de Porto Vecchio, quem havia matado um homem vivia com segurança, com um bom fuzil, pólvora, balas e uma capa escura de capuz para ser usada com coberta e colchão. Os pastores fornecem leite, queijo e castanhas, e não terão que temer a justiça ou os parentes do morto, a não ser quando descesse à cidade para a compra de munições. Há meia légua dali morava Mateus Falcone. Nesta altura, Mérimée traça o perfil do personagem: “Era um homem bastante rico para a região; vivia nobremente, isto é, sem nada fazer, do produto de seus rebanhos, que campônios um tanto nômades levavam a pastar na montanha. Quando o vi, logo após o caso que vou contar, diz Mérimée, pareceu-me que tinha quando muito uns cinqüenta anos. Imaginai um homem baixo, mas robusto, de cabelos crespos, negros como ébano, nariz aquilino, lábios delgados, olhos grandes e vivos, e uma pele cor de couro cru”.

        Prossegue a narrativa: pelos seus méritos, Mateus falcone gozava de grande reputação. ‘Diziam-no tão bom amigo quão perigoso inimigo: que era, aliás, serviçal, dado a fazer esmolas, e vivia em paz com todos no distrito de Porto Vecchio. Mas dele se contava que em Corte, onde casara, soubera desembaraçar-se energicamente de um rival considerado tão temível na guerra como no amor: pelo menos se atribuía a Mateus certo tiro de espingarda que abatera o dito rival, quando se achava este a se barbear diante de um espelhinho pendurado à janela. Abafado o caso, Mateus casou-se. Sua mulher Josefa dera-lhe a princípio três filhas, o que o deixava furioso, e finalmente um filho, a quem chamou Fortunato: era a esperança da família, o herdeiro do nome. As filhas haviam casado bem: seu pai podia contar, em caso de necessidade, com os punhais e as escopetas dos genros. O filho tinha apenas dez anos, mas já anunciava excelentes pendores”.

        A história de Mérimée prossegue com a chegada de um estranho à casa de Mateus Falcone, quando este sai com a mulher para ver um de seus rebanhos numa clareira do mato, deixando o filho, o pequeno Fortunato, por ser muito longe a clareira e também para que ficasse cuidando da casa. Depois de algumas horas da ausência dos pais, Fortunato ouviu tiros que se sucederam, e, depois, surgiu um homem de barba crescida, as vestes em farrapos, apoiando-se na espingarda, que havia recebido um tiro na coxa pelo atiradores corsos; era um bandido que havia saído à noite para comprar pólvora na cidade e sofrera uma emboscada. Aproximou-se de Fortunato e perguntou se era filho de Mateus Falcone; com a resposta afirmativa, o bandido disse chamar-se Gianetto Sanpiero, e pediu ao menino que lhe ocultasse de seus perseguidores.

        O diálogo entre o menino Fortunato e o bandido Gianetto Sanpiero prolongou-se até que este o ameaçou de morte, caso não lhe ajudasse a esconder-se; Fortunato disse a Gianetto que sua espingarda não tinha munição, e, quando foi ameaçado com uma faca o menino disse nada temer por ser mais rápido que ele. O bandido argumentou, que sendo ele filho de Mateus Falcone não poderia deixar que fosse preso na frente de sua casa, argumento que sensibilizou Fortunato. Este perguntou ao bandido quanto ganharia se o escondesse, e Gianetto entregou-lhe uma moeda de cinco francos, que tirou de uma bolsa de couro. O acordo estava fechado. O menino escondeu o bandido num monte de feno em frente da casa, recobrindo-o de maneira a não lhe faltar ar.

         Passados alguns minutos, apareceram seis homens na porta Mateus, trajando uniforme, comandados pelo adjunto Teodoro Gamba, de quem os bandidos temiam por já ter apanhado muitos deles. Chamando Fortunato de priminho, por ser aparentado com Mateus Falcone, perguntou se ele havia visto passar um homem por aqui, há pouco. O menino respondeu que viu passar o Cura no seu cavalo Piero. Pela conversa que tiveram, Teodoro Gamba percebeu que o menino havia visto o bandido, e perguntou-lhe se não o havia escondido, afirmando que as manchas de sangue param aqui. A ordem de Gamba foi para entrarem na casa para procurar o bandido. O menino Fortunato o ameaçou, com risinho zombeteiro, dizendo-lhe ser filho de Mateus Falcone, e que seu pai não iria gostar de saber que entraram em sua casa.

        Então o ajudante Gamba disse ao menino: “Bem sabes malandrin que posso levar-te para a Corte ou para Bastia. Farei dormires num calabouço, em cima da palha, com ferros nos pés, e mandarei guilhotinar-te se não disseres onde está Gianetto Sampiero”. O menino soltou uma gargalhada e disse ser filho de Mateus Falcone. Gamba com isso pareceu embaraçado, e “conversava com voz baixa com seus homens que já tinham atravessado toda a casa. Não era uma diligência muito longa, pois a casa de um corso consiste apenas em uma única peça quadrada. A mobília compõe-se de uma mesa, banco, arcas e utensílios domésticos ou de caça. Enquanto isso o pequeno Fortunato acariciava a sua gata, e parecia saborear malignamente a confusão do primo e dos atiradores”.

        Diante dessa situação, o adjunto e seus homens já olhavam seriamente para as bandas da planície, dispostos a voltar por onde tinham vindo, quando o chefe resolveu envidar um último esforço, tentando o poder das carícias e dos presentes para convencer o filho de Mateus Falcone a mostrar onde estava escondido o bandido, dizendo-lhe, que, se não temesse causar incômodos ao primo Mateus o levaria preso, sem que tal ameaça tivesse causado o mínimo efeito. Então disse ao menino que contaria tudo a seu pai, e que ele quando soubesse de sua atitude haveria de surrar-lhe até sair sangue, ao que o menino disse-lhe: “É o que veremos”.

        Como último recurso o adjunto Gamba ofereceu ao menino um relógio de prata que valia mais de dez escudos: “e, ao ver que os olhos do pequeno Fortunato rebrilhavam ao vê-lo, disse-lhe, segurando o relógio suspenso à extremidade da corrente de aço: - Malandro! Bem que desejarias ter um relógio como este, preso à tua gola. E sairias a passear pelas ruas de Porto Vecchio, orgulhoso como um pavão. E as pessoas te perguntariam:”Que horas são?” e tu dirias: “Vejam no meu relógio”. Depois o adjunto perguntou ao menino: “Então, não queres este relógio, priminho? Fortunato fitando o relógio com o rabo do olho, assemelhava-se a um gato a quem oferecem um frango inteirinho”.

        Mérimée, nesse importante ponto da história demonstra conhecer bem os sentimentos relativos à fraqueza de caráter do homem, como a ambição, a astúcia e a traição. Voltando ao ponto em que o menino Fortunato está por sucumbir à tentação do adjunto Gamba, que fazia o relógio oscilar no ar, às vezes quase lhe batendo no nariz: “Afinal, pouco a pouco, a sua mão direita ergueu-se para o relógio: as extremidades de seus dedos tocaram-no; e o relógio pesava inteiro em sua mão, sem que, no entanto o adjunto largasse a corrente... o quadrante era azulado... a caixa fora recentemente brunida... e ali, ao sol, parecia toda de fogo... A tentação era demasiado forte”.

        O passo seguinte, na história, a traição do menino, após ter apanhado o relógio do adjunto Gamba, que lhe indicou o lugar onde se encontrava o bandido: “Fortunato ergueu também a mão esquerda, e indicou com o polegar, por cima do ombro, o monte de feno a que se recostara. O adjunto compreendeu. Soltou a extremidade da corrente; Fortunato sentiu-se possuidor único do relógio. Endireitou-se com agilidade de uma gamo, e afastou-se dez passos para longe do feno, que os atiradores começaram logo a revirar”. O bandido preso olhou para o menino que lhe traiu, dizendo um palavrão. O menino atirou-lhe a moeda que recebera para escondê-lo, por sentir que não a merecia.

        Mérimée conta os fatos ocorridos após a prisão, e as providências tomadas pelo adjunto Gamba para levá-lo para Porto Vecchio. E que, “Mateus e a mulher apareceram de súbito na volta de um caminho que conduzia a um mato. A mulher avançava penosamente, curvada ao peso de enorme saco de castanhas, ao passo que o marido ia à vontade, carregando apenas uma espingarda na mão e outra a tiracolo; pois é indigno um homem carregar outro fardo a não ser suas armas”. Ao vê-los, Mateus pensou que vieram prendê-lo, embora não tivesse qualquer problema com a justiça. Estava com a consciência limpa. De qualquer forma, preparou-se para defender-se, dizendo para a mulher largar o saco e se aprontar, dando-lhe a espingarda que trazia a tiracolo.

        O adjunto ao ver esses movimentos de Mateus temeu ser ele parente do bandido, vendo-o “avançar daquele jeito, a passos medidos, com arma apontada e o dedo no gatilho”. À vista disso, o adjunto tomou a iniciativa de se separar de seus homens e de adiantar-se para explicar a Mateus Falcone o que se passava: “Sou eu, Gamba, o teu primo”. E contou-lhe que passara por sua casa e fizera uma bela captura: “Acabamos de apanhar Gianetto Sanpiero”. Ouvindo esse relato Josefa sentiu-se aliviada, e disse que “a semana passada, ele nos havia roubado uma cabra leiteira”; esse relato agradou Gamba, mas não a Mateus, que disse: “Pobre diabo! Ele tinha fome”.

        O adjunto Gamba contou-lhe tudo que Gianetto fizera: “matou um dos atiradores e, não contente com isso, inutilizou o braço do Cabo Chardon; mas isso não tem grande importância, não passava de um francês...E depois, ocultou-se tão bem, que nem o próprio diabo poderia descobri-lo. Se não fosse o priminho Fortunato, eu nunca o teria encontrado”. Ao ouvir isso, Mateus exclamou o nome do filho: - Fortunato! E Josefa repetiu a exclamação: - Fortunato! Gamba confirmou e contou como tudo aconteceu, dizendo-lhe que ia contar ao seu tio caporal para que lhe mandasse um presente pelo trabalho, aduzindo: “O nome dele e o teu figurarão no relatório que enviarei ao Procurador Geral”. - Maldição! - disse baixinho Mateus.

        A história de Mérimée, já está se encaminhado para o desfecho: “Tinham alcançado o destacamento. Gianetto já estava deitado na liteira e pronto para partir. Quando viu Mateus na companhia de Gamba, esboçou um sorriso estranho; depois, voltando-se para a porta da casa, cuspiu-lhe à entrada, dizendo: ‘Casa de traidor!’. Só um homem decidido a morrer teria ousado pronunciar a palavra traidor aplicando-a a Falcone. Uma boa punhalada, sem necessidade de repetição, teria imediatamente pago o insulto. Mateus, no entanto, não fez outro gesto que o de levar a mão à fronte, como um homem acabrunhado”.

        Fortunato ao ver que seu pai estava de volta entrou na casa e voltou com uma jarra de leite, e com olhos baixos oferecendo-a a Gianette, que gritou: - “Longe de mim!” Depois, é narrado os últimos momentos em que o adjunto se retira desse local, com o prisioneiro e seus homens. “Transcorreram cerca de dez minutos, antes que Mateus abrisse a boca. O menino olhava inquietamente ora para a mãe ora para o pai, que, apoiado à arma, o considerava com uma expressão de cólera concentrada. – Começas bem! – disse afinal Mateus com voz calma, mas terrível para quem conhecia o homem. – Meu pai! – exclamou o menino, avançando com os olhos cheios de lágrimas, como para lançar-se-lhe aos joelhos. – Afasta-te!” Disse Falcone ao filho.

        Pode-se prever facilmente que Mérimée está na parte mais dramática da história, no seu clímax ou no patético, como se diz em oratória. Nesse momento da história, sente-se qual será o seu desfecho, à vista do caráter de Mateus; do desfecho, participam Mateus Falcone, o filho Fortunato, que, desesperado pede ao pai que não lhe mate, e a mãe Josefa, que tudo pressente, e que se vê impotente para evitar a tragédia. Josefa ao ver a corrente do relógio saindo de dentro da camisa do filho, pergunta-lhe quem lhe dera o relógio, e ele respondeu que foi o primo Gamba. Então, Mateus perguntou a Josefa: “- Mulher, esse menino é meu filho?” Josefa respondeu-lhe: “ - Que dizes Mateus, não sabes com quem estás falando? – Pois olha, esse menino é o primeiro de sua raça que comete uma traição”.

        Agora, chamamos a atenção para o brilhante desfecho da história de Mateus Falcone, digna da importância de Prosper Mérimée para o mundo literário, numa narrativa direta e chocante. Essa obra, entre outras de Mérimée, justificam plenamente constar ele, entre outros, no primeiro patamar da literatura universal.

        “Redobraram os soluços de Fortunato, e Falcone mantinha sempre os seus olhos de lince fixos no menino. Bateu enfim com o coice da arma no solo, lançou-a ao ombro e tomou o caminho do mato, gritando ao filho que o seguisse. Fortunato obedeceu. Josefa correu para Mateus e pegou-lhe do braço. – É o teu filho - disse ela com voz trêmula, fitando os olhos negros nos do marido, como para ler o que se passava em sua alma. Deixe-me, - retrucou Mateus: - eu sou o pai dele. Josefa beijou o filho e voltou chorando para a cabana. Lançou-se de joelhos ante uma imagem da Virgem e pôs-se a rezar fervorosamente. Entrementes, Falcone, avançando uns duzentos passos no caminho, parou enfim junto a um barranco, por onde desceu. Sondou a terra com o coice da arma: achou-a branda e fácil de cavar. O local pareceu-lhe conveniente para o seu desígnio”.

        Mateus Falcone ordenou ao filho: “ - Fortunato, vai para o fundo daquela pedra grande. O menino fez o que lhe ordenavam, depois se ajoelhou. – Reza as tuas orações. – Meu pai, meu pai, não me mate. – Reza! – repetiu Mateus com voz terrível. O menino balbuciando e soluçando, rezou o Padre-Nosso e o Credo. O pai, com voz forte, respondia Amém! no fim de cada prece. – São essas orações que tu sabes? – Eu sei também a Ave-Maria, meu pai, e a ladainha que minha tia me ensinou. – É muito longa, mas não importa. O menino terminou a litania com uma voz apagada. – Terminaste? – Oh! Meu pai, por amor de Deus, perdoe-me! Eu não farei mais! Pedirei tanto ao meu primo caporal, que hão de perdoar ao Gianetto! Continuava a falar, enquanto Mateus armava a espingarda e apontava-a, dizendo-lhe: - Que Deus te perdoe! O menino fez um desesperado esforço para se erguer e abraçar-se aos joelhos do pai; mas não teve tempo. Mateus fez fogo, e Fortunato caiu morto. Sem olhar para o cadáver, Mateus retomou o caminho de casa, em busca de uma enxada para enterrar o filho. Mal dera alguns passos, encontrou Josefa, que acorria alarmada com o tiro. – Que fizeste? – Justiça. – Onde está ele? – Lá embaixo, no barranco. Vou enterrá-lo. Morreu como cristão, mandarei rezar uma missa por ele. Dize a meu genro Teodoro Bianchi que venha morar conosco”.




In MÉRIMÉE, Prosper. Novelas Completas. Trad. Mário Quintana. 2ª. ed. Porto Alegre: Editora Globo, 1960.